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08 / dez / 2020
‘Fake news quebram vínculos de confiança e abrem as portas para o populismo’, diz Charaudeau

Pesquisador francês, referência no campo da linguística, participa de conferência promovida por grupo da UFMG

A grande quantidade de informações disponíveis pode se tornar um problema quando não há a garantia da veracidade do que é divulgado. Para entender melhor o fenômeno das chamadas fake news, objeto de estudo de diversos campos das ciências sociais e humanas, o Núcleo de Análise do Discurso (Nad) da Faculdade de Letras da UFMG (Fale) promove na quarta-feira, 9, a conferência A manipulação da verdade: do triunfo da negação às sombras da pós-verdade, que será ministrada pelo fundador da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, Patrick Charaudeau. Professor emérito da Universidade Paris 13 e fundador do Centre d’Analyse du Discours (CAD), da mesma instituição, Charaudeau também é pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e membro do Collège Iconique do Institut National de l’Audiovisuel (INA). A conferência será realizada em ambiente virtual, a partir das 14h.

O Portal UFMG conversou com Patrick Charaudeau sobre os desafios trazidos pela pós-verdade em tempos de fácil acesso à informação e as relações entre as fake news e o discurso político. Segundo o professor, “a educação nas escolas e universidades é capaz de fornecer as ferramentas intelectuais que possibilitam que as pessoas compreendam e identifiquem as fake news”.

O tema de sua conferência é A manipulação da verdade: do triunfo da negação às sombras da pós-verdade. Como definiria a pós-verdade?
O conceito de pós-verdade tem muitas definições. A pós-verdade pode ser confundida com a mentira ou com a informação falsa, mas ela é fundamentalmente uma maneira de afirmar uma verdade como absoluta, sem possível contradição. A pós-verdade pode ser uma mentira, mas é uma mentira apenas para a pessoa que a julga como mentira, enquanto é uma verdade para a pessoa que a expressa como tal, apesar de todas as suas contradições. Podemos dizer que a verdade da pós-verdade é a verdade da opinião da pessoa: é uma verdade de opinião, não uma verdade factual, nem uma verdade científica.

Vivemos em um tempo em que as fake news têm tornado mais difícil obter informações verdadeiras e de qualidade na internet e nas redes sociais. Como a verdade pode ser manipulada e como ocorre a pós-verdade?
Para falar de manipulação verbal, é preciso ver como se pode negar a verdade. Então, primeiramente, ela precisa ser categorizada porque não existe apenas um tipo de verdade. Por isso é importante definirmos os vários tipos de verdade e depois as distintas maneiras de negá-la – a verdade pode ser negada de forma voluntária, como por meio da mentira, ou involuntária, por meio da denegação, por exemplo. Somente dessa maneira é possível analisar as estratégias de manipulação dos discursos.

Existe uma maneira de se combater a manipulação da verdade e as fake news?
Esta é uma pergunta que não posso responder, pois não estou entre os responsáveis políticos ou de outras instâncias que têm a possibilidade de tomar decisões. Mas é óbvio que a educação nas escolas e universidades é capaz de fornecer as ferramentas intelectuais que possibilitam às pessoas compreender e identificar as fake news.

Charaudeau: pós-verdade é uma forma de afirmar uma verdade como absoluta, sem possibilidade de contradição
Charaudeau: pós-verdade é uma forma de afirmar uma verdade como absoluta, sem contradição. Imagem: Diogo Domingues / UFMG

Como o cidadão comum e não iniciado nas teorias linguísticas pode usar a análise do discurso para se proteger das fake news?
Os jornalistas que fazem jornalismo de pesquisa podem e devem denunciar as fake news. Na França, muitos jornais já têm um espaço dedicado a isso. A análise do discurso é importante porque é capaz de mostrar como e quando se produz uma notícia falsa, além de indicar a categoria a que essa informação corresponde.

O senhor afirma que o não combate às fake news pode gerar o triunfo da negação da verdade. Esse fenômeno afeta a vida das pessoas? Como isso ocorre?
É óbvio que o triunfo da negação afeta a vida das pessoas, tanto singular como coletivamente, mas precisamos destacar que nem toda negação é enganadora. Há negações que têm virtudes, como negar um compromisso de corrupção, por exemplo. Porém, as negações que se apresentam como verdades absolutas afetam a possibilidade de estabelecer relações de confiança entre as pessoas, e, se não existe confiança, não existe a possibilidade de construir um grupo social, uma comunidade de pessoas, seja a família, o grupo de amigos ou o grupo profissional.

Em uma palestra ministrada em julho deste ano, o senhor abordou o populismo e a crise do poder. O atual presidente do Brasil é considerado, por muitos pesquisadores, um representante do populismo e um negador da ciência, fato que pode ser observado no modo como tem lidado com a pandemia de covid-19. Como a manipulação da verdade traz riscos às democracias modernas?
A democracia se funda numa relação horizontal entre os indivíduos, entre os cidadãos. Essa relação deve ocorrer baseada em confiança, pois o sistema de delegação de poder mediante o voto implica confiar na pessoa que é eleita. Se a confiança se quebra, então surgem os protestos e reivindicações sociais.  As fake news quebram o vínculo de confiança e abrem as portas para o populismo.

Na mesma palestra, o senhor afirmou que populismo não é um regime nem uma ideologia, mas uma variante estratégica do discurso político. Nesse caso, como os populistas manipulam a verdade no discurso político para chegar ao poder?
Na conferência de quarta-feira, descreverei as estratégias usadas pelos governantes para chegar ao poder, mas as mais importantes são o discurso de vitimização, que manipula o medo, e a construção do ethos do líder político por meio do seu carisma.

O senhor já afirmou que o discurso político é repleto de contradições. Quais são essas contradições?
São várias, mas a fundamental é a contradição entre as promessas durante a campanha eleitoral e a realidade do exercício do poder, além do fato de que o tempo político dos mandatos não é o mesmo tempo da demanda social.

Charaudeau: todas as relações humanas são marcadas pela força, mesmo as de amor e afeto
Charaudeau: todas as relações humanas são marcadas pela força, mesmo as de amor e afeto. Imagem: Diogo Domingues | UFMG

O discurso é visto por muitos pesquisadores da área como uma ferramenta de poder. O senhor acredita que o discurso também pode ser uma ferramenta de resistência?
Claro, pois a relação de poder pode se inverter. Não se deve confundir relação de poder com relação de força. Todas as relações humanas e sociais são relações de força, inclusive as de afeto e de amor. Em contrapartida, nem toda relação de força é, necessariamente, uma relação de poder ou de dominação. Essa é uma confusão que se observa frequentemente em trabalhos de análise de discurso.

A Semiolinguística, teoria criada pelo senhor, propõe, em sua base, que o ato de linguagem é um produto do contexto e que as análises dependem dos contextos sociais e culturais das populações. Como eles devem ser levados em conta quando se faz pesquisa no campo das ciências sociais e humanas?
Essa é a grande questão discutida nessas mesmas ciências, entre universalismo e relativismo. Na realidade, não deve haver essa oposição. Se, de um lado, existem princípios universais, do outro existem vivências próprias de cada cultura. Do meu ponto de vista, devem-se levar em conta as particularidades de cada cultura para que não se atribua a elas algo que não lhes pertence. A ciência é transnacional, não é universal.