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14 / jun / 2021
Comida na mesa e povo no campo: saberes e desafios da agricultura familiar durante pandemia são foco de projetos

Pesquisadores, agricultores e estudantes se aliam na busca por alternativas para o compartilhamento de saberes e a manutenção da atividade em comunidades camponesas

Saberes tradicionais e acadêmicos se completam no Sítio do Saluzinho, em Montes Claros. Foto: Amanda Lelis | UFMG

“A agricultura a gente não pode desprezar! A agricultura é a vida nossa, a gente tem que incentivar, porque sem ela a vida não tem sentido nenhum”, a frase que inicia o texto é de João Francisco Gomes, agricultor e docente camponês no Sítio de Saluzinho, programa de extensão realizado no Instituto de Ciências Agrárias da UFMG, em Montes Claros. E foi seguindo o ensinamento do Sr. João e outros agricultores e agricultoras do Norte de Minas que, em 2012, a iniciativa foi criada. Desde o início da pandemia de covid-19 e a suspensão das aulas presenciais, o projeto precisou se reinventar para manter suas atividades.

A iniciativa une ensino, pesquisa e extensão para compartilhar os valores e conhecimentos camponeses com estudantes do ensino fundamental do município. Ao longo de sua realização, 70% das escolas de Montes Claros já visitaram o espaço de dois hectares dentro do campus regional da UFMG que recria a atmosfera de um sítio e os modos de vida camponês. Ao lado de sr. João, outros agricultores, professores, alunos e técnicos da UFMG trabalham juntos, ministrando oficinas para estudantes.

A professora Flávia Galizoni, uma das idealizadoras do projeto, explica que ele funciona como um “museu vivo”, um Centro de Referência da Cultura Material da Agricultura Familiar, como está registrado no Sistema de Informações de Extensão da UFMG. O Sítio de Saluzinho se enquadra nos valores do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (PPJ), responsável pela execução da iniciativa.

“O Núcleo, na verdade, é um grupo em rede, que articula professores, estudantes, profissionais e associações da sociedade civil vinculadas à agricultura familiar”, explica a professora. “Buscamos integrar pesquisa e extensão, e unir o conhecimento cientifico acadêmico com o regime de conhecimento camponês”, completou.

Em Montes Claros, as aulas de educação básica estão sendo realizadas remotamente, como explicou em entrevista, Cícera Pereira da Silva, diretora da Escola Estadual Dr. João Alves, que atende cerca de 800 crianças do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. “A adaptação do presencial para o remoto não foi fácil, mas a parceria e os trabalhos precisam continuar. É importante para a escola o que a universidade traz, por ser novidade. São conteúdos que não são abordados nos livros didáticos”, contou.

Flávia explica que 30% das crianças do ensino fundamental de Montes Claros já passaram por formações e oficinas no Sítio de Saluzinho. “A pandemia foi um grande baque, pois não queríamos perder este vínculo já estabelecido. Foi difícil para as escolas, para os acadêmicos bolsistas e voluntários e também para os camponeses”, destacou a professora.

A solução foi desenvolvida em diálogo conjunto entre as equipes da Universidade, camponeses participantes do projeto e escola. Desde o fim de 2020, o projeto produz um boletim com informações, exercícios e curiosidades sobre agricultura familiar e também vídeos que são repassados à escola para inclusão no conteúdo de rotina.

“Não é comparado com a visita, ela é muito esperada por todos os estudantes da escola, mas sabemos que, nesse momento, ela não é possível. Os professores trabalham o boletim como uma aula, o conteúdo é visto dentro de alguma disciplina e envolve não só o aluno, é um aprendizado para toda família”, destacou Cícera.

No projeto, o agricultor João é um dos colaboradores no compartilhamento dos saberes tradicionais vinculados à lavoura e também à cultura imaterial camponesa. Durante a entrevista, ele demonstrou preocupação com o excesso de contato com a tecnologia entre as crianças na atualidade e a falta de conexão com a realidade. “Às vezes, não tem um estímulo para as crianças fora da tecnologia e isso é ruim. Não sou contra a tecnologia, mas a gente não pode descartar o tradicional, o conhecimento, a prática, explicando aquele sistema antigo”, enfatizou.

Desafios da pandemia para a agricultura familiar

Para analisar os efeitos da covid-19 sobre a agricultura familiar, o Núcleo PPJ iniciou em 2020 projeto que alia pesquisa e extensão e visa analisar entraves e soluções vivenciados por agricultores e agricultoras do Vale do Jequitinhonha durante o período de pandemia. Já foram realizadas entrevistas para coleta de dados com representantes de agricultores familiares, gestores públicos e representantes de organizações da sociedade civil de dez municípios.

Entre as primeiras informações obtidas, a pesquisa revelou três aspectos principais. O primeiro é a grande exclusão do público participante do projeto, que é observada na dificuldade na garantia de transporte, baixa renda, idade avançada e raro acesso aos serviços de telefonia e internet nas áreas rurais. O segundo foi a migração de retorno no período de pandemia, gerando uma sobrecarga nos municípios aos atendimentos de saúde, assistência social e ocupação. O terceiro foi um desequilíbrio na capacidade municipal de propor ações e articular programas públicos voltados ao atendimento da agricultura familiar e à população camponesa.

“O que percebemos é que as políticas públicas são fundamentais, principalmente aquelas que têm mecanismos de ação com o local, pois a pandemia tem faces muito diferentes, faces urbanas e rurais”, explicou a professora Flávia. De acordo com a pesquisadora, em períodos de crise como o vivenciado na pandemia é necessário o fortalecimento de políticas que tenham flexibilidade de adequação em concordância com as realidades locais e regionais.

Exemplos de políticas que contribuíram para a manutenção da renda e da segurança alimentar nessas regiões, de acordo com a professora, são o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “Observamos que os problemas estouram primeiro nas prefeituras, os governos estadual e federal foram distantes, não estiveram presentes pensando nas políticas ou fortalecendo-as”, destacou Flávia.

A agricultura familiar tem força no Jequitinhonha para a produção de alimentos para o autoconsumo das famílias e também para o abastecimento dos municípios. A paralisação das feiras livres e comércios locais, assim como as dificuldades de transporte no período de pandemia trazem impactos a esta população que, segundo defende a professora, merecem atenção dos gestores. Nas próximas etapas, estão previstos a devolução de resultados e aprofundamento nas investigações para desenvolvimento de ações conjuntas com prefeituras e organizações de trabalhadores rurais para contemplar os desafios observados durante a pesquisa.

O projeto é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e desenvolvido em parceria com o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) e o Instituto de Trabalhadores e Trabalhadoras do Vale do Jequitinhonha (Itavale).